No final do ano passado o contribuinte acompanhou aflito o julgamento no tribunal superior que culminou na instauração da intitulada tese de que o simples fato de não pagar o ICMS próprio declarado é o suficiente para ensejar uma ação penal.
Naquela oportunidade, ficou consignado pelo STF que esta situação deve ser considerada delito de apropriação indébita, uma vez que o empresário cobra o tributo do consumidor, mas deixa de fazer o pagamento aos cofres públicos. Assim, os órgãos responsáveis estão aplicando assiduamente a teoria de que as empresas que declararem o pagamento do imposto estadual, mas, por algum motivo, não fizerem o recolhimento estarão sujeitos a responder por crime punível com até dois anos de prisão, nos termos do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990 (apropriação indébita).
O fato é que atualmente, diante da crise financeira e de saúde, este tema ganhou notoriedade e questiona-se: Deixar de pagar imposto por conta dos efeitos da pandemia é crime?
Nesta seara, é importante imaginar a seguinte situação que está se repetindo assiduamente: Um empresário deixa de recolher os impostos incidentes em sua atividade econômica, pois, com falta de dinheiro, privilegiou o pagamento dos seus funcionários e seus fornecedores, ficando, por último a conta dos tributos. O fato é que com a queda de receita não foi possível efetuar o recolhimento de tributos. Pergunta-se: cometeu crime quando não efetuou o recolhimento do ICMS próprio?
Primeiramente, adotando um aspecto mais prático para esta situação, é importante esclarecer como funciona a sistemática do recolhimento do ICMS próprio e o que caracteriza a situação do imposto declarado e não pago, conforme segue:
1 – Contribuinte realiza suas operações e destaca o ICMS correspondente em seu documento fiscal;
2 – Escritura a respectiva operação por meio dos seus livros fiscais;
3 – Declara ao Fisco, por meio das obrigações acessórias, todas das suas operações e por sequência quanto é devido a título de ICMS.
Outro fator importante que deve ser igualmente avaliado para este caso é que, na ótica econômica, os devedores tributários classificam-se em três espécies: o eventual, o reiterado e o contumaz.
Assim, os devedores eventual e reiterado são aqueles que desenvolvem suas atividades de forma lícita, mas, deixam de recolher o tributo de modo isolado (devedor eventual) ou em diversos períodos (devedor reiterado). Já o devedor contumaz é aquele que desenvolve suas atividades de forma ilícita, e considera a inadimplência tributária como se fosse parte da sua operação comercial adotando a prática de reduzir artificialmente seus preços para ganhar mercado, prejudicando desta forma o Fisco, a concorrência e a sociedade.
Nesse contexto, constata-se o devedor contumaz deveria estar sujeito as imputações penais, e somente ele. Porém o que se verifica na prática é que meros inadimplentes precisam provar nos autos que não agiram de forma contumaz e com dolo de apropriação dos recursos, o que implica na situação do contribuinte recair na discricionaridade investigativa dos entes públicos.
Diante disto, voltando ao questionamento formulado no início do texto, é preciso alertar aos contribuintes que existe a possibilidade do fisco estadual em conjunto com o Ministério Público aplicar a tese de que mesmo diante da pandemia fica configurado o ICMS declarado e não pago cabendo ao empresário a prova de que não agiu com dolo e é devedor contumaz.
Ocorre que, a resposta a este tema que deve prevalecer é de que o contribuinte que desenvolve atividade lícitas não deve ter sua conduta tipificada como criminosa no simples fato de ter declarado o imposto, mas não ter efetivado o seu recolhimento, pois faltaram recursos em virtude das consequências da crise econômica mundial.
Porém a aplicação do direito não é exata, ou até mesmo coesa, assim, considerando a atuação de alguns fiscalizadores das leis, esta resposta pode ter uma conotação de que é possível caracterizar uma conduta tipificada como apropriação indébita, aplicando as devidas consequências jurídicas, como multa e até detenção.
Caso esta atitude reprovável aconteça, deve o Contribuinte pautar uma solução no fato de que o reconhecimento do caráter criminoso de certa conduta não depende, exclusivamente, do ato executado e a tipificação na lei normativa, é preciso avaliar os demais requisitos que compõem o conceito analítico de crime, quais sejam, as excludentes de ilicitude e a culpabilidade.
Desta forma, no que tange a culpabilidade deve ser aplicada a tese da “inexigibilidade de conduta diversa”, isto porque o devedor não realizou o pagamento dos tributos devidos, tendo em vista uma situação adversa ao seu controle. Assim, considerando o cenário atual, em que, um empresário escritura o imposto em escrita fiscal, ou seja, o declara como devido, mas não efetua o seu pagamento, em virtude da retração econômica em que o faz priorizar pela quitação dos custos da folha de funcionários e fornecedores, não parece plausível, responsabilizá-lo criminalmente pela conduta de sonegação de imposto, até porque, aqui não pode imperar a figura da sonegação e sim da inadimplência.
Mas é claro, que tal argumento não pode ter como base uma simples defesa de tese de direito, em eventual processo, será necessária profunda avaliação de documentos probatórios que comprovem ausência de fraude, bem como, principalmente a analise probatória de que esta situação econômica específica (crise Covid-19) impossibilitou o cumprimento das obrigações tributárias principais, sendo necessária a demonstração da saúde financeira.
Através dos fatos contábeis e seus consequentes reflexos nas demonstrações e indicadores econômicos financeiros, a exemplo dos índices de liquidez, será possível demonstrar nos autos que a empresa está com grandes dificuldades de cumprimento de seus compromissos com terceiros. Um perícia técnico-contábil atestará tal contexto.
Além disto, considerando a situação atual de crise mundial da saúde e financeira, totalmente atípica, em que a classe empresarial está inserida, deve o judiciário amparar suas decisões com base na fundamentação de que a responsabilidade criminal do contribuinte, que comporta penalidades referentes à liberdade dos indivíduos, não deve ser aplicada para os casos de conduta de mera inadimplência, visto que este já sofrerá com a aplicação de uma responsabilidade patrimonial (direito tributário) mediante a imposição das multas, juros e outras penalidades previstas em lei.
Ante ao exposto, considerando a importância do tema, e principalmente o fato de que o estado também precisa de subsídios para enfrentar esta situação caótica, o contribuinte não pode afastar um cenário da instauração de processo criminal frente a um caso que resulte em imposto declarado, mas não pago, devendo, portanto, sempre amparar suas operações com base em consultoria contábil e jurídica especializada para que seja possível uma vasta comprovação probatória em uma demanda judicial.
Por fim, destaca-se a frase do renomado jurista Fernando Facury Scaff, não é prudente que o Estado aniquile sua galinha dos ovos de ouro ao aprisionar os contribuintes por inadimplência, em época de aguda e temporária crise.
*Texto escrito por Alessandra Badalotti, Advogada coordenadora da Unidade de Itapema do escritório Küster Machado, em parceria com nossa Especialista Tributária, Vanessa Ramos.